sábado, janeiro 07, 2012

A delícia de poder sonhar (07.01.2012)

António Manuel Couto Viana, um verdadeiro Senhor do/no Teatro Infantil. Crítico da "simplicidade básica" que as pessoas teimam em "vender" às crianças que, são bem mais espertas e aventureiras que qualquer adulto. Irei falar mais deste senhor quando referir coisas deliciosas que estou a devorar no seu livro. Mas, não fugindo do que me trouxe ansiosa por partilhar com o mundo...
Entre leituras que adormecem a cada parágrafo passei, finalmente, ao livro "O Teatro ao Serviço da Criança". Entre muitas coisas que me despertaram até ao final, este poema foi aquele momento que me deliciou por... por... tudo!!! É como que um "dar de caras" com aquilo que adoramos na infância e "deitar fora" aquilo que sempre ouvimos como correcto ou imposto pelos adultos.
Espero que vos venha a deliciar tanto como a mim.


«É uma história passada no Mundo-das-Meninas-Pequeninas. Um mundo em que não é preciso fingir. Ali, as flores abrem e fecham se está calor ou frio; e a Maria da Lua, quando não tem que estudar, vem ajudar as andorinhas a escolher o lugar melhor para fazerem o ninho. Os montes são sempre lilases, e há sol ou chuva conforme se brinca ou não aos saphis e se procura uma pista na lama encarnada de qualquer terra sem nome. As crianças sabem que nascem como as flores, e as flores ensinam-lhes que o orvalho só vem para aquelas que são boazinhas e brincam ajuizadamente com as borboletas. As trepadeiras entrelaçam-se e, se as meninas estão cansadas, brincam às cabanas. O musgo nunca se zanga se o deixam sózinho - só não admite que lhe chamem polítrico. É a terra das palavras largas e cheias de cantigas. O mar é verde-fundo com peixes de ouro. Os pássaros, ao voar, formam desenhos estranhos. Há caravelas arribadas à costa de areias claras. Os castelos cheios de fadas perdem-se entre árvores azuis. Os dragões e as feiticeiras existem nos fins das florestas sem fim - mas existem só para formar mistério. A palavra Poesia está gravada em todas as pedras - pedras com mais alma do que nós! Os cisnes entoam sempre o último canto - é um país sem lógica, talvez, mas a quem interessa mais sentir do que pensar...
Branca de Neve não teve entrada ali: ela é um símbolo criado pela Gente Grande. Mas todas as meninas pobres de todas as esquinas do mundo procuram nesse país o urso de pêlo e a boneca de tranças enroladas a que tinham direito - como direito tinham de dormir quentes e comer batatas fritas.
Os génios da Floresta Cinzenta fazem chover nos dias tristes e sós. Os furacões e as tempestades estão escondidos em masmorras pretas. A palavra terrível está escrita num desmedido cipreste colocado ao fundo de um barranco.
Peter Pan foi castigado pelas suas ideias subversivas. A Gente Grande pensa que o Grand Meaulnes ali vive. Eu vou contar: numa noite pesada e sem luar a Aventura chamou-o com uivos surdos, e o pobre foi arrastado para o País-do-Tem-Que-Ser.
Ali, os papagaios e os canários não são aves: foram elevados à categoria de mártires.
O Fantástico, a Maravilha, a Beleza, só vão embora depois de as meninas estarem a dormir.
Uma manhã em que o Pato Donald apareceu, as meninas riram... mas não gostaram - e uma onda levou-o.
O Preto Papusse Papão - «ai não se debruce, menino, não!» - anda agarrado pela varinha de condão de fada Não-Tenha-Medo.
As orquídeas estão no País-da-Gente-de-Mau-Gosto-e-Dinheiro.
Os rios não têm corrente fixa: se as meninas querem remar para o alto das montanhas cheias de neve e sonhos - o rio sabe que tem de as levar.
Os pintainhos ficam sempre bolas loiras e desajeitadas, cheias de mimo.
O Presépio está armado todo o ano. Ninguém sabe o que é a Árvore de Natal!
O Tempo e a Distância não têm significação.
Os cogumelos não se arrancam para as bonecas das meninas e as meninas-bonecas fazerem casas.
La Fontaine não tem grandes simpatias por causa da fábula da Cigarra e da Formiga.
As meninas pensam que os condutores dos eléctricos ganham todo o dinheiro que metem na saca de coiro.
O azul do céu nunca desbota e o verde transparente das árvores é sempre de Primavera.
«Saudade» é uma palavra ali admitida - nem sei porquê! Talvez porque as meninas ainda não a provaram.
Eu queria tanto ser uma Menina-Pequenina!...»


1 comentário:

Susana Vaz Pedro disse...

Que delícia, Ana!
:)