domingo, maio 31, 2009

Ás vezes assisto disfarçadamente à vida dos outros.
Na verdade, somos espectadores assíduos da vida daqueles de quem gostamos...
Mas, distraídamente dou por mim também a observar outras vidas... que não conheço... que se cruzam comigo de uma forma passageira, anónima....
Poucas vezes dou-lhes uma história...
Mas hoje, ao longe, assisti a uma cena e lembrei-me do que uma vez ouvi...
Talvez a ficção imite sempre a realidade...


lume - Raquel Coelho



"Comecei a fumar para te pedir lume.
Para arranjar um motivo. Para.Tens lume? Perguntei-te.Sim. Disseste. Levaste a mão ao bolso.Engatilhaste o zippo. Todo prateado.Abeiraste-te e fizeste concha com a mão direita.Eras canhoto, como o coração.Agora. Disseste.E levei o cigarro até à chama.
Já está. E sorriste.Importas-te que te acompanhe? Perguntaste.Não, claro que não. Claro que não.Está frio. Disseste. E esfregaste as mãos.O cigarro sempre aquece.Sim.
Tossi.Estás bem? Perguntaste.Estou muito bem.Óptimo. Disseste. E sorriste.Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada? Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste. E disseste.Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida.Que correram mal, imediatamente mal.Comecei a fumar para te pedir lume.Para passar o frio.Descobri que não viria a morrer.Nem de cancro pulmonar, nem de amor,mas da própria morte, mal o lume se apagou o café fechou as portas. Para sempre."

Hoje não estava frio mas....

segunda-feira, maio 25, 2009

Quando era pequenina chamava-lhe: "Nó na garganta"!


Quantas vezes digo “ Vou dormir!” … mas não fico por aí… tenho a invariável mania de dizer:
“ Daqui a 5 (ou o que seja) minutos vou dormir! “
Como que à espera de me convencer, de me ir preparando e ir preparando os outros…
“Vou dormir”…
Acho que não sou apologista de coisas repentinas…
E quantas vezes vou dormir e fico inerte, mas com a cabeça a deambular pelos lugares mais rebuscados …
Aí , repentinamente, preparo-me para dizer a mim própria (em tom de convencimento):
“ É agora, dorme… dorme… dorme…”

«Não te mata quando chega a hora do dia em que fechas a porta do quarto, porque já não aguentas o mundo lá fora, e desligas a luz do candeeiro como quem interrompe vida?.»

sábado, maio 16, 2009

Parti...

“O mundo é um lugar demasiado grande para se perder a perspectiva; a vida demasiado rica para lhe voltarmos as costas. Recentemente, seguido de uma série de acasos que resolvi apelidar de “milagres”, recomecei a viajar. Como toda a gente, apanhei muitos aviões e comboios nos últimos anos; não é disso que se trata. Trata-se de o ter feito, ao fim de tanto tempo, de olhos abertos e sem a espada de Dâmocles sobre a cabeça. E, quando regressei, percebi que me era impossível regressar.

Que, até ao fim da vida, era isto que eu queria fazer: viajar todos os dias. Mesmo estando quieto, mesmo atrás da mesma secretária escrevendo as mesmas palavras às mesmas intermináveis horas; estarei eternamente em viagem. Porque já perdi demasiado tempo, vou ao armário buscar as minhas malas surradas e velhinhas; vou comprar um bilhete para a vida; e, depois, cheio de esperança e de coragem, vou entrar em cada avião que passa como se só houvesse um sentido, como se nunca se chegasse a parte alguma, como se a viagem fosse na realidade o destino porque todos os dias são dias de partida.”

João Tordo


Estou de partida...porque todos os dias são dia de partida...

sexta-feira, maio 08, 2009

"Enchemos de sombra a mesma rua"


Um dia fui ao cinema e acabei com uma menina desconhecida (que conheci depois) a dormir ao meu colo.

Já vivi também a versão masculina da bela adormecida com muito pouco de conto de fadas. A carrugem apareceu ao estilo moderno… encaixada num comboio. Era a 21! E na improbabilidade de algum dia me ter visto antes, e sem qualquer intenção de piropo, o meu companheiro de lugar confidenciou-me sentir que já me conhecia antes. Talvez do sonho de que acabava de acordar, disse. E ficámos por ali, num silêncio duradoiro!

Naquele silêncio duradoiro fui contagiada pela sensação do desconhecido!
Podemos fazer do desconhecido, conhecido… ou optar por não conhecer… ou por conhecer noutra altura…


Sim, naquele silêncio duradoiro fui contagiada pela sensação do desconhecido!
E precisei de lembrar o que fui conhecendo…alguns “tus”…antes desconhecidos… agora conhecidos…ainda desconhecidos nuns aspectos…

Conhecer devagar e não num ápice… com cuidado…
(Re)conhecer as descobertas…

Pois é… Conheço-te! Será que por acaso?
Escolhi ir conhecendo ( e não por acaso)…



Já deixei o meu nome gravado por aí, num lugar que só nós sabemos…
Achei um tesouro em cima de uma árvore depois de me teres feito correr atrás de ti…
Em tempos, já caí desastrada para o meio de um rio com a tua mochila às minhas costas…
Já construí um puzle de peças mínimas contigo, enquanto discorríamos sobre o desprazer de tal tarefa.
Tenho guardados todos os papelinhos que trocávamos religiosamente na aula de físico química.
Um dia, saí à noite contigo e uma varinha mágica escondida no casaco com a intenção de espalharmos magia…
Já escrevi uma viagem ao mundo contigo e desci uma duna de mãos dadas mas nunca andei às tuas cavalitas e tenho pena!
Parti o dedo do pé a jogar futebol só porque queria marcar golo na tua baliza.
Já dormi com muitas borboletas no quarto e contigo na cama ao lado.
Limpei sapos de um tanque gigante sem saber que me convidarias mais tarde a ficar imersa naquela água a ver o pôr do sol.
Já dei um grito forte naquela praça muito povoada que fizeste de tua casa este ano!
Sentei-me na pedra que escolheste, encostada a ti, naquele monte que tão bem nos acolheu a conversa e nos equilibrou a ousadia de movimentos malabaristas.

Já te desenhei um bigote em canetas de feltro enquanto me rabiscaste qualquer coisa no rosto, para depois sairmos à rua!
Quase enchemos uma sala de balões só com o sopro de nós as duas!
Já ficamos a ver a noite inteirinha a cair, sem nos deixarmos apoderadar pelo sono, naqueles degraus estreitos.
Já acordei a meio da noite para ver se estavas bem!
Ensinei-te a minha dança e tu fizeste questão de a imortalizar.
Já rezaste por mim e... e eu por ti!

Já...


"A tua vida é uma história triste.
A minha é igual à tua.
Presas as mãos e preso o coração,
enchemos de sombra a mesma rua."

Eugénio de Andrade



Nas ruas destas vida... Conheci-te...